Mariana Santos's profile

Ilustração para uma crônica de Eloí Bocheco

     De todas as peças que Ceiça pregou, a mais marcante foi a do Botudo. Durante certo
tempo, tanto eu como meus irmãos, acreditamos nesta entidade que ela inventou.
Noite alta, silêncio completo, vinha o Botudo rolar no corredor, perto dos quartos
onde dormíamos. Rolava de um lado para o outro com seu corpanzil pesado e maciço.
     Seu barulho se avantajava no escuro profundo da noite, quando até os grilos estão
silenciosos. Encolhidos sob os lençóis de algodão rústico, transidos de medo,
respirávamos aliviados quando o Botudo ia embora. Durante o dia a entidade sumia
misteriosamente. Nem sinal de que existira e rolara no corredor durante a noite.
     Um dia descobrimos que o Botudo era nosso velho conhecido. E mais: comíamos o
Botudo no café da manhã. Assado ou cozido. A criatura, tão temida, era doce e cremosa.
Era, na verdade, uma enorme batata doce que, amarrada a uma corda comprida, se
espalhava pelo assoalho, sob o comando de Ceiça. Alguns instantes de rola-rola eram
suficientes para nos convencer da existência do fantasma. Durante o dia o tubérculo era
escondido no porão, num lugar que nunca acessávamos.
     A figura sinistra arrebanhava todos os nossos terrores. Foi a única vez em que,
literalmente, comemos o medo. Desfeita a fantasia, o Botudo voltou ao estado de
tubérculo inofensivo, rico em ferro e vitaminas.
     O tempo passou e trouxe os medos abissais que causariam terror a um Botudo singelo, que queria muito mais divertir do que assustar.
 
(Eloí Bocheco)
Ilustração para uma crônica de Eloí Bocheco
Published:

Owner

Ilustração para uma crônica de Eloí Bocheco

Published:

Creative Fields